sábado, 10 de dezembro de 2011

Actas do Colóquio/

http://www.flusserstudies.net/pag/archive11.htm

domingo, 5 de setembro de 2010

Flusser in Rio

vejam em http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/1simpflusser.htm uma pequena reportagem fotográfica do colóquio Flusser in Rio...

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Existencialismo e Cristianismo

«Começarei por uma rápida análise do “eu”, pelo existencialismo. Quando me encontro a mim mesmo, encontro-me sempre em situação, isto é, estou no mundo. A forma do meu ser é sempre um estar aqui (Dasein). Neste meu estar aqui, a minha situação me preocupa, porque me fecha. As coisas das quais consiste a minha situação se opõem a mim e barram meu projeto. Sou determinado pelas coisas. Ao me projetar contra as coisas, verifico que estas podem ser apreendidas, compreendidas e empreendidas, e que me posso libertar delas ao transformá-las em meus instrumentos. Mas, por que posso fazer tudo isto? Porque a minha forma de ser é diferente da das coisas. As coisas estão diante de mim, cheias de si mesmas. São, na palavra de Sartre, “top choses” (coisas em demasia). Mas eu tenho em mim uma vacuidade, sou invadido pelo nada. Sou uma forma de ser defeituosa, porque estou aqui para a morte. Por este meu defeito, sinto nojo das coisas demasiadamente cheias. As coisas me enchem. E este meu nojo é o ponto de partida da minha decisão de libertar-me das coisas. A minha vacuidade, que é o meu estar para a morte, me permite transcender as coisas. É por esta vacuidade que estendo as mãos para alcança-las. É por esta vacuidade que existo. Existir significa estar invadido pelo nada. Este nada em mim, que é o próprio fundamento do meu estar aqui, é uma fenda na situação compacta na qual me encontro. É em virtude dessa clara noite de angustia do nada, que descubro dentro de mim, que vejo as coisas como são, a saber, coisas e não nada. O nada em mim, o nada que sou, é a fenda pela qual o mundo surge para estabelecer-se em meu redor na situação na qual me encontro. A situação em meu redor, a minha circunstancia, brotou do nada, que se esconde no meu centro. Foi o nada em mim, que estabeleceu o mundo. Como os senhores vêem, essa analise ontológica do “Dasein” desemboca numa espécie de budismo, embora numa espécie ocidental de budismo. O nada em mim, do qual falam os existencialistas, é um nada activo, “nadificante”, e tem pouca semelhança com o nirvana, do qual é paralelo. Com efeito, esse nada é o lugar deixado vago pelo Deus do Cristianismo, depois de ter este morrido, para usar uma palavra de Nietzsche. O existencialismo é cristianismo invertido.»

Vilém Flusser, Filosofia da Linguagem, p. 165, Staden-Jahrbuch, Bd. 18, São Paulo 1970.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

A história do diabo

"A expressão “história do diabo” tem, etimologicamente vista, raízes profundas. O termo “história” tem a ver com camadas que se sucedem uma à outra, e a língua alemã liga o termo “história” (Geschichte) com o termo “camada” (Schichte). O termo “diabo” tem a ver com o conceito da confusão, e, de maneira inquietante, com o conceito “Deus”. Mas esses acordes etimológicos que a expressão “história do diabo” evoca serão apenas registrados pelo nosso ouvido ingênuo, e aceitos sem crítica, embora com emoção, ao tentar aproximarmo-nos do príncipe das camadas inferiores. A divindade se apresenta àquele que A procura em múltiplos aspectos, de modo que por “embarras de choix” se torna Ela inalcançável. O mesmo se dá na tentativa de agarrarmos o diabo. Mas a Divindade é intemporal. Ela simplesmente é, e a correnteza dos acontecimentos transcorre alhures. O diabo é possivelmente imortal, mas certamente surgiu em dado momento. Ele nada na correnteza do tempo, quiçá a dirige, ele é histórico no sentido estrito do termo. É possível a afirmativa de que o tempo começou com o diabo, que o seu surgir ou a sua queda representam o início do drama do tempo, e que “diabo” e “história” são os dois aspectos do mesmo processo. Assim poderíamos afirmar que a nossa tentativa de fugir do diabo é um outro aspecto da nossa tentativa de emergir da temporalidade e ingressar no reino das Mães imutáveis. Mas uma afirmativa semelhante demonstraria uma atitude negativa para com o diabo e faria com que tomassem conta de nós os preconceitos que contra ele nutrimos. Se lhe queremos fazer justiça, devemos evitar a influência da propaganda antidiabólica que há tanto tempo deturpa a sua imagem. Um príncipe que tantos encheu de entusiasmo no decorrer da história humana, e em louvor do qual tantos enfrentaram as chamas com dedicação ardente -tantos mártires, tantas bruxas, tantos feiticeiros-, um príncipe tão glorioso merece que a nossa mente esteja livre de preconceitos, quando dele nos aproximamos para conhecê-lo pelo menos em parte.

Nós, os ocidentais, somos produtos de uma tradição oficial que pinta o diabo com cores negativas, a saber, como opositor de Deus. Essa tradição parece querer esgotar-se. Ultimamente poucos ocidentais têm-se dedicado à pintura do diabo. As próprias religiões parecem não ter mais o diabo no corpo. O Ocidente cala-se com respeito ao diabo, e pretende tê-lo esquecido, de acordo com a regra: “não se pense nele”. É uma atitude suspeita. Havia épocas, por exemplo os séculos 13 e 16, em que o tema do diabo era discutido pública e apaixonadamente. Eram épocas incômodas para o domínio do diabo. Uma breve consideração da atualidade e da história recente parece demonstrar como esse domínio consolidou-se. Essa consideração é um dos motivos deste livro."

...

domingo, 18 de abril de 2010

Progredir na vida

Um otimismo desenfreado caracteriza a Idade Moderna. Para ela a vida, por exemplo, progride, bem como tudo o mais progride - "progride" significa "tornar-se mais perfeita". E, com efeito: que progresso a ameba fez em sua carreira rumo à formiga e ao homem. E que progresso fez a própria humanidade desde o paleolítico (no qual comia fígado fresco de mamute) até hoje, (quando come cachorros-quentes). Tal otimismo ululante não era sempre o caso. Na Idade Média, por exemplo, era somente da morte que se falava. A vida para ela não passava de cursinho preparatório para as provas vestibulares chamadas "morte". "Progredir na vida" significava então "avançar rumo ao eterno descanso". O que não é, afinal das contas, uma maneira inteiramente enganada de enxergar as coisas.

O ideal seria poder ver o mundo simultaneamente dos dois pontos de vista. Ver, por exemplo, na semente não apenas a futura árvore, com suas folhas, flores e frutos, mas também o húmus que a árvore formará, depois de derrubada (ou a lenha na lareira). E ver a vida na sua totalidade não apenas como processo que há vários milhares de milhões de anos adquire formas sempre mais complicadas, mas também como processo que necessariamente terá involução e desaparecerá, como desapareceu em Marte. E simultaneamente enxergar na semente as sementes dos frutos futuros, e na vida como um todo, um processo que se repetiu e se repetirá em inúmeros planetas. Seria ideal, mas difícil.

É difícil, porque quem admite o eterno retorno está admitindo o absurdo de tudo. Para o otimista tudo tem sentido: tornar-se perfeito. Para o medieval, tudo tem sentido: passar para o outro lado. Mas, para quem admite as duas maneiras de ver o mundo, nada tem sentido: é como a pedra que Sisifo carrega para o alto da serra, para vê-la rolar sempre de novo em direção da baixada. Admitir o absurdo é difícil.

E, no entanto, não é impossível. O segredo reside nisto: saber do absurdo e progredir não obstante. Camus, no seu livro O Mito de Sisifo, sugere que Sisifo gosta de carregar pedra. E por que não seria isto verdade? Não carregamos acaso nós também pedras com muito gosto, das quais sabemos, em momentos de honestidade, pelo menos duas coisas: que provavelmente nunca alcançaremos o alto da serra, e que, admitindo embora que o alcançaremos, a nossa pedra não terá grande futuro lá no alto? Sabemos ainda que o alto da serra não é necessariamente um lugar muito mais agradável que a baixada. E não obstante gostamos de carregar a pedra. Carregar pedras sempre assim, isto sim seria progredir na vida.

Tentemos. Não custa.


Vilém Flusser * Publicado em "Folha de São Paulo" 07/03/1972

quarta-feira, 14 de abril de 2010

DORA FERREIRA DA SILVA

Vilém Flusser

Do livro
Bodenlos: eine philosophische Autobiographie.

Dusseldorf/Bensheim: Bollmann, 1992.

Tradução de Dora Ferreira da Silva.

[...]

Como esta questão veio à tona no decorrer dos diálogos que tivemos caracteriza o seu clima - de um certo modo o problema do símbolo sempre nos preocupara como um problema central. Quando nos dedicamos, desde o início de nosso próprio desenvolvimento à filosofia da linguagem, isto foi porque vivenciávamos principalmente na linguagem um sistema de símbolos. E quando esta preocupação se estendeu posteriormente à área abrangente da Comunicação, foi porque reconhecíamos a essência da comunicação na 'mediação' e portanto na simbolização de mensagens. O problema do símbolo aparece-nos certamente sob diversos aspectos. Por exemplo, o símbolo é um fenômeno que substitui outro, isto é, o significa. Logo, a totalidade dos símbolos é um universo que significa outro. Mas isto descreve exatamente a relação entre o 'espírito' e o mundo das coisas concretas'. Ou o símbolo representa sua significação dialeticamente, ele a substitui e ao mesmo tempo a traz à consciência. E esta dialética da mediação simbólica é um problema fundamental do conhecimento. Ou então, pelo fato de um símbolo substituir outro fenômeno passa a adquirir significado. Fenômenos que não substituem outros, não têm significado. Igualmente sem significado são os símbolos que apenas pretendem representar um fenômeno (símbolos vazios). Portanto, o mundo das coisas concretas é sem significado e igualmente sem significado é o pensamento formal 'puro'. Em resumo, simbolizar significa conferir significado àquilo que não o tem ('dar sentido'); e decodificar significa redescobrir o sentido dado e voltar às coisas concretas (no sentido de Husserl 'zurück zur Sache'. Assim, a teoria de comunicação parece oferecer-se como método de através de decodificação radical, avançar em direção a uma teoria radical das coisas. Pois esta percorre o símbolo como mediação entre sujeito e objeto em sentido inverso. Decodificar torna-se sinônimo de tornar-se estranho ('ent-fremden'). Assim o símbolo aparece como equivalente ao 'logos' heideggeriano, mas o método é oposto ao de Heidegger; não é pela manipulação de 'logos', mas pela demolição que se pode chegar à coisa e assim evitar o antropocentrismo de Heidegger (Existencialismo). Por isso a síntese possível de fenomenologia, Lógica formal e dialética parece-nos o método do futuro.

Em Dora o símbolo não é mediação primeira entre sujeito e coisa concreta, mas entre o sujeito e o transcendente. O significado último do símbolo não é uma coisa no mundo vivo, mas o que está do outro lado dos limites do mundo vivo. Para ela também o símbolo é um equivalente do 'logos', mas porém no sentido heideggeriano ou da lógica simbólica, mas no sentido da Stoa e do cristianismo. Cristo como Logos, para ela, não só é o mais alto símbolo, a mediação par excellence, mas ao mesmo tempo a chave da decifração de todos os significados, da decodificação radical. Segundo achamos, o símbolo é obra humana (através da convenção ou de outra forma criada) e serve para superar o alheamento humano diante das coisas concretas. Dora, pelo contrário, considera o símbolo como uma obra transumana (uma revelação) e deve salvar o homem do seu alheamento de seu chão transcendente (do pecado original). Dito de outra maneira, para nós o símbolo é um meio de outorgar um significado ao absurdo do mundo, e a decodificação é uma desocultação do absurdo. Para Dora, o símbolo é um modo de manifestar o significado do mundo, e a decodificação é, para ela, uma descoberta do significado autêntico. Aqui se mostra uma profunda dicotomia, que cinde a cultura ocidental e a cada um de nós, individualmente, de um modo absurdo; a dicotomia entre gregos e judeus. Do ponto de vista dos gregos, o alheamento é a perda do contato imediato com o 'topos uranilós' e portanto é necessária a mediação através do 'Logos' como 'Soter' (Salvador). Do ponto de vista dos judeus o alheamento é a perda de contato imediato com as coisas do mundo vivo, e esta perda se dá através da inserção dos símbolos entre o homem e o mundo vivo. Por isso, a salvação para os gregos está na mediação (no Logos) e para os judeus na ruptura de toda mediação. Pois para os gregos o alheamento é um equívoco e para os judeus, um pecado. Investigar (Lógica) salva segundo os gregos e corrompe segundo os judeus. Nenhum dentre nós pode escapar a essa dicotomia, não só porque as duas concepções estão ancoradas em nós, mas principalmente porque em nós se confundem em diversos níveis (por exemplo, no cristianismo, na ciência e no marxismo.) Ninguém pode ser grego ou judeu simplesmente, porque não se é mais capaz de distingui-los claramente um do outro. Quando ocorre aparentemente uma separação (por exemplo, como o Renascimento versus Reforma), devemos constatar como é judeu o Renascimento aparentemente grego e como é grega a Reforma aparentemente judaica (porque evangélica). No decorrer com os diálogos com Dora foi um ganho inestimável ver comprovado clara e inevitavelmente, através do problema do símbolo, o que acabamos de dizer.

A ambivalência do símbolo, seu significado ao mesmo tempo "concreto" e "transcendente" (de tal modo que os dois conceitos se confundem) é decididamente uma mensagem da poesia de Dora. Ela faz lembrar singularmente o pensamento medieval, a Kabbala, a alquimia, Raimundus Lullus, apontando assim para a poesia concreta. No centro de sua poesia há uma série denominada "Tapeçarias", que evoca realmente tapeçarias medievais (como as que podemos ver em Beaune ou Angers). Com sua estrutura logicamente perfeita, com os seus símbolos paradoxalmente secretos e transparentes, com a aparente ingenuidade e efetiva perfeição técnica, sobretudo com a respiração de sua beleza sutil, ela é uma introdução ao universo de Dora. Poetar significa para ela tecer símbolos salvíficos que nos ancoram novamente na verdadeira realidade. Por isso, poetar significa para ela o mesmo que orar ou rezar, e é talvez por isso que não é capaz de dar o passo para trás da poesia: esse passo a faria entrar no totalmente Outro, no significado do mundo. Ter vivenciado com ela este movimento para além do símbolo foi uma experiência insubstituível, difícil de avaliar.

Outro tema das nossas conversas deve ser mencionado: Rilke. Para Dora, ele é principalmente o poeta das Elegias de Duino que ela traduziu magistralmente para o português. Para nós mesmos, Rilke é um rio caudaloso que sempre aponta para as Elegias e os Sonetos, mas que fala mais eloquentemente através de seus poemas menores, como A pantera, O cisne, Um profeta, ou A morte é grande. Pois o problema de Rilke, tal como o vemos, é caminhar num atalho perigoso, entre o kitsch e a beleza insuportável. Como Rilke soluciona isso é sempre surpreendente: como ele rima em A morte é grande, "Mundus" e "uns", a posição da palavra "geruht" no Cisne; como rima "verlassen" e "Kassen" em Os reis do mundo estão velhos. Só quando o vivenciamos podemos compreender por que nas Elegias o belo nada mais é do que o início do terrível que desdenha destruir-nos. O kitsch como horizonte do belo (a "gente" como horizonte do "se") - este é o problema de Rilke; a ponte entre o "rebanho" nietzscheano e a "conversa fiada" em Heidegger. Rilke é profético quando prediz o kitsch como forma cultural do futuro. Aliás, o poema Os reis do mundo estão velhos é definitivamente indispensável para qualquer exame do problema do kitsch. Pois ele não deve ser avaliado apenas esteticamente, mas também orficamente.

Este porém não é o Rilke de Dora. Ela não vê de modo algum um traço do kitsch que Rilke pressagia e significa. Em sua tradução de Rilke não há vestígio do kitsch. Para ela, Rilke é a capacidade incrível de tornar a linguagem "usual" transparente para o significado transcendente. Por exemplo, seu uso da palavra "calmo" ou "necessitar". Como ele emprega a palavra "terra". Ou os "amantes" na segunda pessoa do plural. Para ela, autêntica poesia. Derramar vida em palavras mortas. Tal modo de ler Rilke abre horizontes; ela relaciona Rilke não apenas com Goethe, mas com os eslavos, não só com os poetas de Praga, mas também por exemplo com Maiakowski, com o formalismo russo do qual Rilke foi contemporâneo. Uma prova de que Rilke não é apenas um poeta "decadente", como muitos críticos alemães parecem acreditar. Dora o experienciou melhor. Provavelmente Alemanha, mais do que no Brasil, "as pálidas filhas" entregaram "as coroas doentes do poder". O que na Alemanha morreu poderia talvez nascer sob uma nova forma no Brasil, graças às obras criadoras como as de Dora - no caso de que haja ainda esperança para um "projeto brasileiro"; pois a luta é desigual: de um lado, a tradução de Rilke para o português, de outro a tradução da tecnologia para as florestas brasileiras. O kitsch deve triunfar? O verdadeiro futuro brasileiro (como Dora) deve fazer o "progresso" recuar ou incorporar-se a ele. Algo de valiosamente belo poderá ser sufocado com isso e nada mais se poderia fazer do que testemunhar este processo da Europa.

E também a vivência do diálogo com Dora: um mútuo encontro de duas existências tomadas pelo Belo na onda ascendente do kitsch, da eficiência e do pathos grandiloquente. Este encontro foi, em parte, o resumo da resolução tomada de afastar-me do Brasil. Se, como sabemos, o símbolo é ambivalente, se ele também comporta dois lados, pode ser que o engajamento no mundo concreto signifique alheamento da autêntica realidade no momento em que não houver mais nenhum relação entre o mundo concreto e a realidade autêntica. Aqui se pede um suspender-se uma "espera". Não é porém a suspensão uma forma de contestação, no sentido de "Eles também servem, aqueles que meramente param e esperam?" Tal questão pertence estreitamente ao sentido do pensamento de Dora.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Vilém Flusser no Brasil

Olhavas - óculos na testa -
e vias com a lupa da alma
calando mistérios.
Bastava a tarde
que dizia a superfície das coisas.

A luz se espreguiçava no terraço
com seus dedos de sombra. Amigos
iam chegando, a festa do pensamento
se iniciara. Conceitos fugiam
(ou símbolos)
e eram capturados na tapeçaria do dia
quase findo. Cachimbo na mão
investias contra argumentos
vacilantes e os deitavas por terra.

Amavas decifrar o sutil e ambíguo,
erguias paradoxos cambaleantes.
Nomes não davas
acaso os suprimias e ao chão em que andavam -
Bodenlos - assim olhavas o esvoaçar
de gente, pensamentos. Bodenlos.
Enfim te atiravas à poltrona segura -
sorrindo - em silêncio.


Dora Ferreira da Silva

segunda-feira, 5 de abril de 2010

"Toda palavra é uma espada flamejante do diabo"

"A língua é o inimigo visceral da fé, e tudo o que por ela for tocado ficará imune à intervenção do divino. Toda palavra é uma espada flamejante do diabo, e a língua como um todo é um único protesto contra as limitações do intelecto, um grito de articulação contra o inefável, um brado de guerra contra a divindade, uma expressão da inveja do intelecto humano dirigida contra Deus.

[...]

Somos indivíduos, somos intelectos individuais, porque consistimos de palavras (expressões da inveja diabólica contra Deus) consolidadas pela gramática (expressão da avareza diabólica que tenta preservar a realidade por ele criada). A mente humana, essa suprema ilusão de realidade, é a obra mais perfeita do diabo, e é neste sentido que a nossa insistência avarenta na manutenção da nossa individualidade é o triunfo supremo do diabo. O nosso empenho em prol da língua (que é o empenho em prol do nosso intelecto), e nosso empenho em prol da propagação do enriquecimento da língua (que é o empenho em prol da imortalidade do nosso intelecto), é o ponto culminante da carreira gloriosa do diabo. A superação da língua, que seria o abandono do intelecto, implica a perda da nossa individualidade, e, do ponto de vista oposto ao diabo, a salvação da nossa alma"

- Vilém Flusser, A História do Diabo, São Paulo, Annablume, 2006, pp.149-150.

domingo, 4 de abril de 2010

"Estamos emergindo sempre do silêncio primordial e ingênuo que é o paraíso"

"Voltemos, para interpretar a teia lingüística que é o pensamento, ao mito da expulsão do paraíso. Essa expulsão é portanto equivalente a uma expressão, a um grito. Cada palavra é um grito assim, e com cada palavra que pensamos, com cada conceito que formulamos, estamos sendo expulsos do paraíso. A corrente das palavras, a conversação, é o rio que nos arrasta das nossas origens, e pelo indizível que se esconde entre as palavras estamos sempre nas proximidades das nossas origens. Desse indizível, dessas aberturas que a língua conserva para o nada, é que brotam sempre novas palavras, novos pensamentos. Estamos emergindo sempre do silêncio primordial e ingênuo que é o paraíso. Com efeito, essas nossas aberturas para o silêncio ingênuo, essa nossa capacidade para o espanto ante o nada, essa nossa capacidade de gritar o nosso espanto, é sinal da nossa autenticidade. É sinal que ainda estamos na proximidade misteriosa do nada"

- Vilém Flusser, "Pensamento e Reflexão", Da Religiosidade. A literatura e o senso da realidade, São Paulo, Escrituras, 2002, pp.43-44.

quarta-feira, 31 de março de 2010

PANORAMA FILOSÓFICO BRASILEIRO

Graças ao apoio financeiro da “Fundação Nuce e Miguel Reale” será possível publicar o Índice da Revista Brasileira de Filosofia, por título dos artigos e nomes de seus autores, abrangendo os 200 fascículos trimestralmente publicados pelo Instituto Brasileiro de Filosofia – IBF, de 1951 ao ano 2000, o que corresponde a meio século de atividade filosófica.

Esse Índice foi organizado pelo benemérito “Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro – CDPB”, sediado em Salvador, organização admirável que devemos a esse incansável batalhador pela Filosofia brasileira que é Antonio Paim, com apoio de Manoel Castro e de um dedicado grupo de intelectuais baianos. É desse Centro também uma obra preciosa, o Dicionário Bibliográfico de Autores Brasileiros, com nada menos de 506 páginas dedicadas a Filosofia, Pensamento Político, Sociologia e Antropologia.

É, pois, ocasião oportuna para uma visão panorâmica da Filosofia no Brasil, sem ficarmos vinculados a esta ou àquela Escola, ou aos nomes de centenas de estudiosos.

O certo é que em pouco tempo a nossa bibliografia filosófica cresceu extraordinariamente, acrescida aos preciosos livros da chamada “Escola do Recife”, resultante da obra criadora, a cavaleiro dos séculos 19 e 20, de pensadores como Tobias Barreto, Silvio Romero, Clóvis Beviláqua e Graça Aranha. Paralelamente a essa Escola temos a figura de Farias Brito como representante da corrente espiritualista, na qual sempre estiveram presentes filósofos aristotélico-tomistas como o Pe. Leonel Franca.

Posição à parte, marcando a presença de A . Comte em São Paulo, tivemos Luiz Pereira Barreto, cujo positivismo heterodoxo o levava, na década de 1870, a dizer que contrapunha a lei oriunda da experiência às leis abstratas pregadas na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, como o fazia João Teodoro, que foi operoso governador da província de São Paulo, sendo ele adepto do “socialismo filantrópico” de Krause, contraposto ao individualismo de Kant.

Mas a ideologia dominante foi a positivista, como o demonstrou Ivan Lins, às vezes confundindo a orientação científica com a religiosa, ambas tratadas por A. Comte. Por outro lado,nem todos os positivistas eram comteanos, como é o caso de Pedro Lessa, positivista na linha de Stuart Mill, com significativa influência nos domínios da Filosofia do Direito. Seu sucessor na mesma Faculdade de Direito, no início do século 20, foi João Arruda, pregador do “socialismo harmônico”, inspirado também no pensamento de Krause e Ahrens, cujo pensamento, como se vê, prevaleceu por duas vezes nas Arcadas de São Francisco.

Em contraposição, merecem logo referência, os representantes ilustres da Filosofia espiritualista, que se opõem tanto ao krausismo como ao marxismo: Maurílio Teixeira Leite Penido, Jackson de Figueiredo, Alceu de Amoroso Lima, Gustavo Corção, Tarcísio Meirelles Padilha, Leonardo Van Acker, Carlos Lopes de Matos e Eduardo Prado de Mendonça. Distinguem-se esses autores pela sua reflexão não reduzida apenas a Santo Tomas, inclusive quanto à linguagem, como foi o caso de João Mendes Júnior. Nem pode ser olvidado a tendência socializante do tomista Henrique Lima Vaz, seguido por Fernando Arruda Campos.

Essa notável mudança nos estudos deveu-se, principalmente, a duas fontes, a Universidade de São Paulo – USP e o Instituto Brasileiro de Filosofia – IBF, aquela fundada em 1934, e este em 1949.

Ainda não foi feita a história imparcial desse evento, o qual teve na USP dois momentos distintos, um ligado, respectivamente, a A. Comte e a Espinosa, com João Cruz Costa e Livio Teixeira, e um outro marcado pela filosofia marxista, que se prolonga até hoje.

A grande missão do IBF foi estabelecer um contato permanente entre os pensadores brasileiros devido à Revista Brasileira de Filosofia, a periódicos congressos nacionais e internacionais. Com isso o Brasil passou a ter o seu lugar no mundo filosófico universal, não ficando, porém, limitado à exegese do pensamento estrangeiro.

No IBF congregaram-se pensadores de todas as doutrinas, desde a dialética hegeliana de Djacir Menezes até o “intuicionismo da ação” de Blondel seguido por João de Scantimburgo. Se fui fundador do IBF, pude contar com a estupenda equipe formada por Luis Washington Vita, Vicente Ferreira da Silva, Renato Cirell Czerna, Heraldo Barbuy, Vilém Flusser, Milton Vargas, Teófilo Siqueira Cavalcanti, Roque Spencer Maciel de Barros, Adolpho Cripa e Lourival Vilanova, depois enriquecida por Antonio Paim. Vicente é sem dúvida o maior metafísico existencial da língua portuguesa. Luis Washington foi o grande artífice da união dos pensadores brasileiros e portugueses, que culminou, mais tarde, com a fundação do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira.

Devido a essa abertura no plano das idéias, não houve corrente de pensamento que não repercutisse no Brasil, como o demonstra Antonio Paim na sua até hoje insuperada História das Idéias Filosóficas no Brasil. Neste livro o leitor encontrará a relação das obras de Filosofia Social e das demais Filosofias das Ciências que surgiram no País no século passado.

Outra presença notável atualmente é a do raciovitalismo de Ortega y Gasset, com belos estudos de Gilberto de Mello Kujawski e de José Maurício de Carvalho, recompondo tradicional ligação com o pensamento espanhol.

Para demonstrar o conquistado diálogo universal das idéias, lembro os nomes do existencialista Ernildo Stein, dos fenomenólogos Creusa Capalbo, Aquiles Cortes Guimarães e Eduardo Portella, este com a sua sempre atualizada e renovadora revista Tempo Brasileiro, e a produção poliédrica de Euryalo Cannabrava, Gerd Bornheim, Almir de Andrade, Constança Marcondes César, José Guilherme Merquior, Benedito Nunes, Sérgio Paulo Rouanet e Luis Fernando Coelho. Gláucio Veiga e Maria do Carmo Tavares de Miranda.

No campo da Filosofia e da Filosofia do Direito e Política, temos ainda a presença criadora de Celso Lafer, Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Evaristo de Moraes Filho, Machado Neto, Luis Luisi, Paulo Mercadante, J. Oswaldo de Meira Pena e tantos outros.

E a fecunda produção continua, especialmente no chamado culturalismo, que é a corrente dominante, com meus estudos e de muitos outros pensadores, como, por exemplo, os de Antonio Paim, Vamireh Chacon, Nelson Saldanha, Tarcisio de Miranda Burity, Ubiratan de Macedo, Ricardo Vélez Rodriguez, Leonardo Prota e Luiz Alberto Cerqueira, todos sempre em contato com o pensamento universal.

Finalmente, para não estender em demasia essa visão panorâmica, faço especial referência a Newton C. A. da Costa, que é um dos reconhecidos fundadores da Lógica Paraconsistente, uma das maiores expressões da Lógica contemporânea, na qual já se situava a significativa obra de Leônidas Hegenberg.

Foi nesse amplo e variegado panorama que, a final, se consolidou a Academia Brasileira de Filosofia, fundada por Jorge Jayme de Souza Mendes, e hoje sob a presidência realizadora de João Ricardo Moderno, com bela sede no Rio de Janeiro.

MIGUEL REALE 16/07/2005

terça-feira, 30 de março de 2010

Vampyroteuthis infernalis


Louis Bec

Louis Bec (FR): We are all extremophiles.

Louis Bec

Louis Bec with Vilém Flusser [c-lab.co.uk]

Louis Bec, born in Algeria and living in France, is a biologist and zoosystematician who extends his scientific field with a fabulatory epistemology based on Artificial Life and Technozoosemiotics. In this field he has specially collaborated with his life long friend and philosopher Vilém Flusser, who first introduced him to artistic research on artificial life, and who wrote about Bec’s Vampyroteuthis infernalis in his book with the same title.

In 1972, Bec founded the Institut Scientifique de Recherche Paranaturaliste, where he studies the incapability of living beings to understand their own existence: Upokrinomenes and Upokrinomenology. Within his paranaturalistic research, Bec has developed a series of potential beings, which he endows with chimerical and fictional characteristics. This extension of biological evolution and simulating new life forms, emphasizes on how these could bring forth evolution, a unique search for new zoomorphic types and forms of communication between artificial and natural species.

Bec is both artist and scientist in the field of artificial life and 3D technologies. He is as much a biologist, artist, curator and educator, and has been a ministry officer for new technologies in arts. Bec is Director of CYPRES (Centre Interculturel de Pratiques et Echanges Transdisciplinaires) in Marseille.

He has presented his ideas in many exhibitions, such as From animals to Animats, and articles: for V2_ he published the essay Squids, Elements of Technozoosemiotics: A Lesson in Fabulatory Epistemology 1 of The Scientific Institute For Paranatural Research in the 1997 publication TechnoMorphica.

http://mutamorphosis.wordpress.com/2009/02/24/we-are-extremophiles/

domingo, 21 de março de 2010

sábado, 20 de março de 2010

MÁSCARAS

Os outros me vêem como sou, ou sou como me vêem os outros? O difícil não é saber como me vêem os outros. Posso lê-lo nos seus olhares. O difícil é descobrir quem sou eu. A socrática recomendação do autoconhecimento e o mandamento shakespeariano de sermos fiéis a nós mesmos impõem dura tarefa. Muito mais fácil é assumir-me tal como me veja nos olhares dos outros. Por exemplo, os outros me chamam de subdesenvolvido em vias de desenvolvimento? Por isso serei tudo isso “a outrance”, e eis que me desenvolverei maravilhosamente. Desempenharei o papel que me foi imposto de fora maravilhosamente. Vejam como o Japão conseguiu isto. O mundo o admira. A máscara ocidental lhe assenta tão bem, que até os olhos das ex-gueixas já parecem “caucasianos”. O “nequi-tai-neck-tie” (e com ele o milagre econômico) triunfa. O Japão está a caminho do seu grandioso destino. A saber, o destino que lhe foi reservado pelos outro. Ao ter assumido a máscara, o Japão desistiu da difícil tarefa de encontrar-se. Modelo japonês? Não, máscara japonesa. Mas não se pode andar mascarado impunemente por tempo indeterminado. Não se pode representar o papel de tecnocrata sempre impunemente, quando se é no fundo samurai (ou pai de santo) . Não se pode, porque uma surda sensação que brota do núcleo vai desmentindo tudo. A sensação diz: tudo isto está errado. Nada daquilo que faço me diz respeito. Não me diz respeito porque eu não me respeito. E é nessa surda sensação que pode dar-se a descoberta do próprio eu. No nojo de si mesmo. Não sei se há no Japão equivalente do Carnaval brasileiro. Eu duvido. Porque o Carnaval rompe periodicamente a mascarada. Periodicamente, vastas camadas da população brasileira se descobrem. Assumem-se, não como as vêem os outros (subproletariado) mas como são (orgiasticamente festivas). Passam a viver, periodicamente, não papéis pré-determinados por outros, mas funções pré-determinadas pela sua própria estrutura. Isto é: passam a viver de verdade. Os outros chamarão a isto: alienação coletiva. E sorrirão o seu sorriso turístico condescendente. “Alienação”, porque abandono de uma realidade imposta por eles. Mas, para os participantes do Carnaval, alienação é o resto do ano. Embora devam admitir, por força da “circunstância” (como se diz), que retomarão as máscaras impostas na quarta-feira de cinzas. Mas, dado o domingo, provavelmente não serão japoneses nunca. Quem será, possivelmente, somos nós, os burgueses duplamente alienados, que usamos duas máscaras (ou, quiçá, nenhuma).

Vilém Flusser *
Folha de São Paulo, 16/02/72.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Indiferença

Temos, enquanto ocidentais, dois e apenas dois modelos para a morte. A morte do Cristo na cruz e a morte de Sócrates dialogando. Prova radical que somos, enquanto ocidentais, uma síntese malograda entre judeus e gregos. Malograda, porque, ao imaginarmos a hora da nossa morte, não sabemos como queremos morrer: apaixonadamente ou impassíveis - embora, muito provavelmente, na hora da morte isto não conte.

Imitação de Cristo ou de Sócrates: eis no fundo nossa escolha. Ser santo ou engajado, ser filósofo ou contemplativo. Do ponto de vista cristão a escolha socrática é escolha da alienação e do pecado. Do ponto de vista socrático a escolha cristã é escolha da ilusão e do engano. Não há maior pecado do ponto de vista cristão que a "tristeza do coração", isto é, desamor, indiferença. E não há maior engano do ponto de vista socrático que o deter "opiniões", ou seja, afastar-se da sabedoria. Escolhas estas que não podem ser sintetizadas.

Temos exemplos radiantes da indiferença socrática: tanto da indiferença aos movimentos em meu redor, ataraxia, quanto da indiferença aos sofrimentos no meu íntimo, apatia. Como, por exemplo, o herói que morre indiferente às dores; o imperador romano que morre em pé, congelado em cubo de gelo; o bruxo medieval que morre calmo e sorri­dente na fogueira; o gentleman inglês que morre fumando cachimbo; o aristocrata francês que se dirige à guilhotina escolhendo o perfume apropriado; Goethe que morre escrevendo; ou ainda, o hippie atual que morre em reedição ao gentleman, "à bout de souffle" acendendo cigarro. O comum a todos os exemplos é a morte, e a vida com dignidade, isto é: esteticamente. Ter vida e morte belas, limpas, não sujas de sangue.

A indiferença elaborou, ao longo da historia do Ocidente, duas grandes ideologias. A estóica na Antigüidade, a classista na Idade Moderna. Dois grandes impérios, o romano e o britânico, elevaram a indiferença em ideal oficial e predominante. O ideal do gentleman inglês - aquele que carrega o fardo do "homem branco" - pode ser resumido nesta famosa sentença: ter consciência e camisa limpa. Nada é capaz de perturbá-lo e, portanto, nada pode sujá-lo. É "impecável".

O grande confronto entre as duas maneiras de vida ocidental, entre amor e indiferença, se dá no confronto entre Cristo e Pilatos. Um, cujo rosto está sujo da saliva de seus inimigos, de suor e de sangue. O outro, que lava as mãos em bacia elegantemente servida por escravos. Tal encontro pré-figura a história toda do Ocidente. Na atualidade, por exemplo: confronto entre engajado e tecnocrata.



Vilém Flusser * Publicado em "Folha de São Paulo" 01/03/1972

quinta-feira, 11 de março de 2010

DA FICÇÃO

Considerem a famosa sentença de Newton: hypotheses non fingo (minhas hipóteses não são inventadas). E considerem, em contrapartida, a sentença de Wittgenstein: “as ciências nada descobrem: inventam”. A contradição entre as duas sentenças desvenda uma profunda modificação do nosso conceito da realidade e ficção, da descoberta e invenção, do dado e do posto. Com efeito, desvenda a perda de uma fé em realidade dada e descobrível. E mostra a nossa situação como ficção inventada e posta por nós. A sensação do fictício de tudo que nos cerca, e do fingir como clima da nossa vida, é o tema da atualidade, e também do presente artigo.

O leitor objetará que nada há de especialmente atual nesse tema. É, pelo contrário, um tema que acompanha todo transcurso do pensamento. Sempre terá havido pensadores que vivenciavam o mundo como ficção enganadora. Para dar apenas alguns exemplos: Platão (vemos apenas sombras); Cristianismo medieval (o mundo é uma armadilha montada pelo diabo); Renascimento (o mundo é um sonho); Barroco (o mundo é teatro); Romantismo (o mundo é minha representação); Impressionismo (o mundo é como se).

Não, caro leitor, não é esta a sensação que se articula na sentença wittgensteiniana. Todos os exemplos mencionados concebem o mundo como ficção, se comparado com alguma realidade. Para Platão as sombras que vemos contrastam com a realidade das idéias. Para o cristão medieval este vale de lágrimas contrasta com a realidade divina. Para o renascentista o sonho dos sentidos contrasta com a realidade despertada do pensamento. Para o barroco o teatro do mundo tem a realidade matemática por bastidores. Para o romantismo o mundo como minha representação brota da realidade da vontade. Para o impressionismo o como se do mundo contrasta com a realidade do Eu transcendente. Mas para Wittgenstein (e para Einstein, e para Kafka, e para Sartre, e para Mondrian, e para Beckett, e para Hitler, e para os Beatles, e para a juventude da rua Augusta, e para o leitor e para mim) não há termo de comparação para a ficção que nos cerca. A ficção é a única realidade. E este é o tema do presente artigo.

Que digo se digo: “ficção é realidade”? Uma contradição de termos. O significado de ficção é não-realidade, o significado de realidade é não-ficção, e a relação entre estes dois significados é o assunto da teoria do Ser – da ontologia. Se digo “ficção é realidade”, estabeleço uma sentença que nega o significado dos seus termos, portanto uma sentença sem sentido. E, simultaneamente, aniquilo o assunto da ontologia. Há, pois, nesta minha sentença, um clima nítido de aniquilação, que posso denominar, logicamente, como o clima do sem-sentido, filosoficamente como o clima do niilismo, existencialmente como o clima do absurdo, teologicamente como o clima do maniqueísmo, e clinicamente como o clima da loucura. É o clima da atualidade. Considerem como funciona.

Tomem como exemplo esta mesa. É uma tábua sólida sobre a qual repousam os meus livros. Mas isto é ficção, como sabemos. Essa ficção é chamada “realidade dos sentidos”. A mesa é, se considerada sob outro aspecto, um campo eletromagnético e gravitacional praticamente vazio sobre o qual flutuam outros campos chamados “livros”. Mas isto é ficção, como sabemos. Essa ficção é chamada “realidade da ciência exata”. Se considerada sob outros aspectos, a mesa é produto industrial, e símbolo fálico, e obra de arte, e outros tipos de ficção (que são realidades nos seus respectivos discursos). A situação pode ser caracterizada nos seguintes termos: do ponto de vista da física é a mesa aparentemente sólida, mas na realidade oca, e do ponto de vista dos sentidos é a mesa aparentemente oca, mas sólida na realidade vivencial e imediata. Perguntar qual destes pontos de vista é mais “verdadeiro” carece de significado. Se digo “ficção é realidade”, afirmo a relatividade e equivalência de todos os pontos de vista possíveis.

Pois bem, e se eliminarmos todos os pontos de vista possíveis? Se pusermos todos eles entre parênteses e procurarmos contemplar a essência mesma da mesa? Que resta? A fenomenologia responde a esta pergunta: “resta a pura intencionalidade”. Mas que significa isto? A rigor: “nada resta”. A mesa é a soma dos pontos de vista que sobre ela incidem. A realidade da mesa é a soma das ficções que a modelam. A realidade é o ponto de coincidência de ficções diferentes. E se eliminarmos essas ficções fenomenologicamente, como camadas de uma cebola, restaria aquilo que resta na cebola: nada.

Na ânsia de salvar uma realidade que não seja fictícia invertemos os termos. A mesa é ficção, ou soma de ficções, de acordo. Mas a realidade está naquele outro lado da mesa, a partir do qual as ficções se projetam. A mesa é ficção, mas nós, enquanto inventores da mesa, somos realidade. Como assim, perguntamos perplexos? Que somos nós sem a mesa – ou sem um equivalente da mesa, sem qualquer objeto? Não somos exatamente aquilo que se lança sobre mesas? A nossa transcendência subjetiva sem um objeto a ser transcendido é rigorosamente nada. Somos reais apenas em função da mesa, ou de um objeto equivalente. Sem objeto qualquer somos mera ficção, mera virtualidade.

Pois bem, e se a realidade não está nem no objeto, nem no sujeito, talvez então se encontre na relação entre ambos? Na bipolaridade? No predicado que une sujeito e objeto? Tanto sujeito como objeto são ficções, de acordo. Mas a realidade está na relação entre ambos. O conhecedor e o conhecido são ficções, de acordo. Mas o conhecimento é realidade. O vivo e o vivido são ficções, de acordo. Mas a vivência é realidade. Muito bem, mas se há tantas relações quanto pontos de vista? Se a mesa é conhecimento meu enquanto tábua sólida e enquanto campo vazio? Ambos os conhecimentos são realidade. São ontologicamente equivalentes. E esta admissão significa, no fundo, a admissão de que realidade é ficção, e ficção é realidade.

Tudo isto é loucura. Tudo isto é fingimento. A nossa época se finge de louca. No fundo sabe da realidade. Daquela realidade que nem vivência nem conhecimento podem proporcionar, porque ambos são enganadores. Daquela realidade que apenas a fé proporciona. Mas notem bem: quem se finge de louco, está louco. Hamlet se finge de louco – mas sua ficção é, por isto mesmo, realidade. De tanto fingir-se de louco, prova Hamlet que é louco. De tanto fingirmos acreditar na ficção da vivência e da razão, acabamos perdendo a fé na realidade.

A sensação do absurdo e o cogumelo atômico estão aí para prová-lo.



Vilém Flusser * Publicado n’O Diário de Ribeirão Preto, São Paulo, em 26 de agosto de 1966.